terça-feira, 2 de abril de 2013

Sagarana (Guimarães Rosa)


Li Sagarana. Bom, a minha impressão no começo foi de muita estranheza, desconhecimento de termos e palavras típicas do sertão mineiro e baiano, fiquei meio perdido, incapaz de relacionar os acontecimentos com o local até por essa dificuldade. Curiosamente, isso só se deu no começo do primeiro conto. A estranheza diminuiu porque eu parei de me preocupar tanto com o sentido literal das palavras e fui tentando intuir delas o sentido em relação ao contexto, e ir ‘sentindo’ como fluía a relação dessas palavras com esse mesmo contexto, o que ele revelava, como se expressava e acho que consegui compreender melhor mesmo quando não entendia. Difícil explicar.

A impressão que fica do livro é de uma série de contos, de novelas que tratam de assuntos banais, que podem ter ou não um final imprevisto, trágico ou cômico, como se o único intuito fosse o da conclusão. Mas se percebe com a leitura que o intuito das estórias, se intuito há, é o da estória mesma. O centro, o sentido de todos os contos, não é o sertão, nem o sertanejo, nem os atos que os entrelaçam, mas algo maior, transcendente, o sentido por trás de local, personagem e evento, é o Sertão mesmo, o Sertão que resume em si todos os contrários, as andanças sofridas e os sofrimentos andados da vida sertaneja, da vida que é relação do vivente com o onde-se-vive, a vivência, essa vivência é que é o Sertão, ou melhor, o Sertão encerra toda essas vivências e seja o fim inesperado de alguém, de alguéns, seja a morte, a vida, o fim trágico ou a situação trágica, tudo é uma imagem do Sertão, um símbolo deste, que representa e reatualiza todos os sofrimentos das vivências e como esses sofrimentos todos, em seu enfrentamento, é que consiste a vida verdadeira vivida e a libertação, enfim, é atingida.

E a linguagem é a maior prova, o maior testemunho dessa realidade, dessa concretude. Difícil de engolir no começo, mas é ela que leva o leitor a se aprofundar no Sertão, a enxergar, a sentir, por essa linguagem pedregosa, o quão duro e real é a vida, em todas as suas vivências.

Conto por conto:

O Burrinho Pedrês

Estória singela, do ponto de vista de um burro, que faz a gente se perguntar: ‘Realismo mágico’, ‘Fantasia’? Nada disso. Não tem mágica nem fantasia, nem fantasismo nem fábula, muito menos mito ou qualquer explicação fantástica de antropomorfização do burro. O burro é burro mesmo, na real, burro de verdade, burro concreto, mas burro sertanejo. E aqui tudo é sertanejo, a estória, a trama que se desenvolve entre o dono da boiada, os boiadeiros empregados seus, sua condução da boiada, as dificuldades do trabalho, a trama principal, o amor plus traição plus vingança. E isso tudo arremetido na nossa frente, e bem visível, acompanhado de uma série de menores causos, subtramas, paralelas, que se vão contando e tecendo com aquela linguagem peculiar do sertão, da vida rural, vida mesmo. E enquanto vemos essas estórias se entrelaçando e se desenvolvendo, a gente pára, olha, pensa e quando vê, se abate a grande desgraça sobre os boiadeiros, a tragédia grande que tudo engole, apequena, relativiza. Como tudo na vida, o grande destino é grande mesmo, nada que o homem pense como grande lhe toca, e das pequenezas faz um diabo cavalgando a morte.

A volta do marido pródigo

Esse conto aqui é bem engraçado. Parece de menor importância: o relato de um homem sem muita responsabilidade e cheio dos dotes de esperteza do meio em que vive, dono de uma sabedoria pragmática mas com uma volubilidade e uma instabilidade infantis. Sem muita noção ou maturidade, ele não dá muito valor a nada, nem à mulher, vai pra fora de seu lar experimentar as coisas da ‘civilização’, depois retorna, cheio de saudade e a gente vê como, pela mesma esperteza que lhe degradou por sua vontade, ele agora vai se criando, se imiscuindo, se metendo e conquistando aos poucos. Jeitinho brasileiro? Eu não vi nada transcendente aqui, então creio que sim, mas talvez esteja como imagem da alma sertaneja, dos extremos em que cai um homem por conta de ser imagem das contradições do lugar e época em que vive.

Sarapalha

Sarapalha é mais diferente, único. Parece que o foco está menos nos personagens e mais no cenário, cenário devastado, fedegoso, doente. É uma estória pungente mesmo, me emocionei com aqueles dois, e como a história deles, seus amores, esperanças, tristezas e mágoas casava com aquela desgraceira toda e peste e morte e cadáveres fedidos etc. Foi duro mesmo, duro ver a dureza de coração ali, como tudo parecia mais difícil.

Duelo

Duelo foi complicado, e não gostei tanto assim. Estória de traição, vingança, perseguição. Aqui a linguagem se mostra mais sertaneja ainda, com os usos, falares, mentalidade jagunça mesmo, dureza do sertão. Mas o mais surpreendente e metafísico de tudo é o final: o vingador-traidor desiste de sua vingança, acometido pelo seu mal ele busca se redimir do mal que causou e de seus outros pecadilhos pela quietude, a convalescença que não vem mas se espera, a bondade caridosa do bom trato com os outros, com o moleque aspirante a pistoleiro, moleque que é bom, é bom e grato ao seu benfeitor e acaba fechando o conto metendo uma bala no antigo perseguido. Não sei se dá pra sentir pena do morto, pena mais se tem é de quem se odiava no começo. O sofrimento redime, transfigura, deifica.

Minha Gente

Parece romance de folhetim, até por ter como protagonista um mineiro assim tão civilizado, conhecedor dos usos e modas, até galante à sua maneira amineirada. Um gentleman. E envolvido em um caso de amor. O que se destaca aqui, além do aspecto político-regionalista, é a descrição dos amores e de sua saudade pela prima. Isso é muito doído mesmo. E o final foi um soco no estômago. O amor se desilude, outra é a noiva, outro o casamento, e tudo surpresa, e… não sei mesmo. Não houve uma grande tristeza de amor desiludido, houve uma surpresa desagradável, algo que tanto mostra como o amor engana e desengana, como a realidade é coisa falseada pelos enamorados, quanto mostra que esse amor engana o leitor também, ele é absorvido pela obra, de tão concreta, tão real. E essa decepção é duríssima, lembra bastante o conto ‘Arábia’ do Dublinenses, de James Joyce.

São Marcos

Retrato muito interessante das crendices e superstições do povo do interior, e contado por um que lá vive, e um poeta, sabedor das belas descrições da natureza e dos costumes do povo em que ele vive. E que não se furta aos ódios pequenos também, e logo se vê vítima de um feitiço que só se finda pela vingança última. O que chama bastante a atenção aqui é a incerteza inoculada no leitor sobre o que estamos lendo, se é feitiço mesmo ou balela, e, sendo balela, se a verdade não existe mesmo ou se está na fé no feitiço. Tudo complicado e difícil de compreender, de pegar nas mãos, mais ou menos como a magia aparece nos livros de Cornwell, mais loucura que magia, no entanto, mágica. E a metafísica, a superação das contradições, está no fim de quem perverte a ordem natural com suas artes, e fim trazido pelo ofendido, fim querido pela natureza, fim ôntico, filosofante.

Corpo Fechado

Ainda aqui se fala de feitiços e na complicada questão de sua veracidade, sua verdade como falácia ou como psicológico que movimenta a coragem, mesmo sendo o real do feitiço uma coisa irreal. Mas o que mais gostei foi do Manuel Fulô, malandrão, cheio dos trejeitos mais típicos do sertanejo valentão e espertalhão, síntese das condições sociais e econômicas, mas isso é também um palavrório apequenador. Manuel Fulô não é síntese de nada além de si mesmo, o que é nele característico e nostálgico talvez seja aquela sabedoria e simplicidade que quem é de família nordestina, de origem rural, sabe bem, e bem aprecia. Um conto gostoso. E transcende bem aquela morte.

Conversa de Bois

Seria um conto mais mágico que fantástico. A conversa entre bois ocorre como se estes estivessem, no seu trato com os homens, se hominizando, deixando cada vez mais a bestialidade e o mais fantástico desse processo é o processo mesmo, a transformação paulatina deles em algo como que homens. Sem liberdade e técnica nenhum, eternos escravos, mas homens na aceitação do domínio, homens na consciência de si, da alimentação, da vida que vivem e dos homens, consciência, mas ela pontuada por muito instinto ainda, bem vivo e às vezes adormecido. Nesse sentido é que eles falam com saudade contrariada do boi Rodapião, exemplo avançado de hominização. E paralelo a toda essa conversa, e no meio dela, o drama duro e dolorido de chorar do menino Tiãozinho, com o pai morto depois de prostrada doença, a mãe e seu Agenor traidores, e herdeiros do destino do menino. E esse drama vai também se desenvolvendo conforme a boiada avança, como se aprofunda a tristeza de Tiãozinho conforme avança na estrada e avança nas lembranças.
O fim? É um fim justo, recompensador, duro também e meio auto-repreensível, mas esses sentimentos que invadem não são mais fortes que a conversa dos bois.

A hora e vez de Augusto Matraga

Diz-ser o conto mais importante do livro e pude perceber o porquê. A vida de Nhô Augusto é uma vida de brutalidade, seu ser e todo o seu agir se resume na entrega aos desejos, às suas vontades próprias, e pequenas maldades de cada dia. A ponto de sua mulher que até lhe tinha amor, lhe deixa, deixa por outro. E a própria vida toma conta de Augusto, a vida mesma lhe arma, na pessoa de seus antigos jagunços, um revés que lhe teria custado a vida não fosse a gente que o acolheu. Só mesmo Deus pra lhe valer daquele jeito, lhe salvar daquela forma! E pra que o salvaria se não fosse pra lhe salvar de inteiro, todo, sua alma inclusa? Abandonada sua vida cheia de violências e desmandos, nosso heroi Augusto se vê em um processo de regeneração, de redenção, de muitas rezas e piedade, de muita paz e trabalho duro, braçal, honesto. Nós nos deslumbramos com a transformação do homem brabo em homem manso e cristão fiel e temos esperança em sua resistência às tentações.

Até a chegada de Joãozinho Bem-Bem, e aquele seu fascínio jagunceiro, a memória de outra vida, a coragem que inspira os homens mesmo na vilania, a troca da miséria piedosa e da vida mansa feminil pelo varonil e viril andar e batalhar do fora-da-lei. Tentado por essa vida, por essa coragem, nosso heroi já havia percebido que, para ele, mudado de uma coisa pra outra em instantes, pra ele não haveria redenção pela contínua santificação, mas só na desintegração total, no fim imediato para lhe pagar os erros. Encontra o amigo, cai na tentação? Não, ele encontra na hora daquele ataque, daquela jagunçagem toda, ele vê ali sua hora e sua vez, iria ele se fingir de cego ou seria ele insensível? Não!, ele iria defender, defenderia com sua vida o bem, o justo e o direito, defenderia porque foi pra ISSO que ele foi poupado, ESSA é a sua hora e a sua vez. E os moribundos trocam carícias, se despedem como mártires, como quem verteu toda a taça e agora sofre o reverso, agora se acaba, agora tudo culmina. Tudo finda. Todas as contradições são superadas e Deus sorri no fim de tudo, a libertação aqui está.

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