terça-feira, 2 de abril de 2013

Dublinenses (James Joyce)


Li o livro em poucos dias. Acho que foi bom ter lido assim, de uma vez e relativamente rápido mas refletido porque pude reter certas impressões muito fortes e ainda absorver o todo da obra.

O que mais chama a atenção é a unidade em torno do homem em sua relação com o tempo, não só com o tempo nem apenas com a idade, mas com o todo que liga tempo, idade, homem, pathos ou falta de pathos. Em outras palavras, a unidade dos contos está nos efeitos do tempo universal e do tempo particular (as condições sociais, culturais, políticas e religiosas da Dublin de fins do século XIX e começos do XX) e como esses efeitos vão se orquestrando e se organizando em um quadro melancólico de pessoas que ao mesmo tempo que assumem sua identidade irlandesa (registrada em vícios e virtudes características), se identificam ao todo da humanidade. São as mesmas virtudes e vícios, principalmente vícios, de todos os homens mas encarnados em almas se deslocando pela bela e suja Dublin. Dublin é a corporeidade. Não é só um corpo, é o que dá corpo, forma, a consciências atormentadas por si mesmas, pelas próprias hipocrisias, paixões, divisões na alma. Os dublinenses são tão reais como eu e você, e nossas consciências não são menos atormentadas que as de Little Chandler ou do narrador de Arábia.

Falando dos contos, acho meio complicado falar de cada um. Basta dizer minhas impressões sobre os que mais me chamaram a atenção, exceto por um ou outro menos importante onde se podia ver esse retrato da alma mais ou menos cru, mas de forma superficial, mas é totalmente culpa minha não ter captado isso, creio eu. Outros rasgaram meu coração, me feriram mesmo, provavelmente por eu me ter identificado com algumas situações e com os sentimentos ali descritos. Um exemplo foi Arábia: o amor do narrador criança por aquela moça é descrito de forma tão cruelmente exata, um sentimento puro, doce, cândido, angelical de adoração silenciosa, de suspirar tímido e isolado, praticamente uma paixão religiosa, e toda essa volúpia que se entrega inocentemente a um simples pedido da amada, um pedido por algo banal, até inútil. E essa inutilidade não impede de o coração estabelecer uma relação de devoção, de missão que vai se afinando pelo martírio constante da ansiedade que vai corroendo a alma até a realidade do banal, do simples, que bate de frente com toda essa idealidade sonhadora, fantasista, doce… e a pobre criança chora. De ódio? De quem? Provavelmente, de si mesma…? Interessante notar que os contos envolvendo a infância não me chamaram a atenção como esse; sim, eles se ligaram a mim de uma forma melancólica e doce também, mas era mais nostalgia que outra coisa, enquanto esse me trouxe memórias antigas e, com elas, dores antigas, uma comunhão no sofrimento mesmo.

Entre os contos da adolescência, ‘Eveline’ e ‘Após a corrida’ me tocaram mais. O primeiro pela razão que todo conto romântico-realista toca: a disparidade entre o desejo do coração e a realidade, e aqui acompanhada de um senso de banalidade que chega a ser ofensivo. Ofende tanto que foi um lampejo mais forte, mais um, da genialidade do Joyce. Já o segundo me remeteu a situações reais e mais que a elas, a estados de espírito, a uma euforia muito característica da adolescência, da juventude, a fuga de responsabilidade, e em tudo uma visão jovem, viciada, perdida, desagregada que permeia todas as Dublins do mundo. Mas que aspira a algo diferente, a algo mais sublime, hermético talvez?

Entre os contos da vida adulta existe só Argila que não me chamou muito a atenção. Os outros foram angustiantes, pungentes mesmo, dolorosos. ‘Uma pequena nuvem’ é o conflito entre estilos de vida, entre estilos de viver a vida, entre almas e seus destinos, os caminhos que percorreram e mais que isso, a sua relação consigo e com os próximos e como isso afeta, aliás, até funda e forma seus destinos. Nada idealizado aqui, nada mais que enfrentamento de egos, a irritação do banal elevada a um paroxismo de dor e de ira, onde o vício (ira) é a bílis que escorre de um organismo corrompido pela rotina incessante e miserável, pela insuportabilidade do mundo, de si mesmo, da Dublin particular. Esse foi tenso demais. Aí temos ‘Contrapartida’ e seu ‘heroi’: aqui é muito claro, muito evidente, a predileção instintiva (é o instinto que impera aqui) de Farrington pelo… instinto, ou melhor, por si mesmo. Tudo à sua volta é desimportante, tudo é relativo, inútil, até odioso, tudo que exista no mundo que não seja para satisfazer seus vícios pessoais, seu apetite descontrolado pelo niilismo alcoólico, tudo, é inútil, quando não é a satisfação do vício em si ou meios de conseguir mais uma dose. Não existe aquela sanha em conseguir uma garrafa ao custo de qualquer coisa, isso seria baratear demais a Dublin de Farrington, não, ele se satisfaz sim mas em tudo a satisfação do vício aliada a outros eventos igualmente viciados, outras instâncias de vício, de satisfações egoístas, de valorações egoístas. E o final, o da surra, é pungente exatamente por isso, além da violência, é o de saber que isso só vem fechar a incessante e dolorosa busca de se satisfazer nunca ficando satisfeito não apenas no vício, mas na contemplação do vício, na transformação degradante de tudo, de toda sua Dublin, em vício. Encerrando, temos ‘Um caso doloroso’. Duffy é o típico misantropo, mas que diferente de outros seres recolhidos, isolados, niilistas, se vê às voltas com um envolvimento que ele julga ser incapaz de manter e mesmo de desejar. Isso gera um afastamento e pela própria intelectualidade desse afastamento, já sentimos algo de triste aí. E só piora: as notícias que ele recebe em seguida são ainda mais crueis porque não dá nem mesmo pra evocarmos remorsos, sofrimento que redime o homem de si mesmo e do mundo e o restitui à liberdade e comunhão com o gênero humano, não, aqui o remorso não vem, só há raiva e uma tentativa de esquecer. Isso choca, é doloroso demais. Mas… parece que Joyce não é um total descrente da metanoia: Duffy é uma pequena centelha de esperança, mesmo ele tem arrependimento, sofre ao contemplar a vida, se sente responsável por ela, lamenta não ter cuidado dessa flor. Ela morre, ele morre com ela, morre dentro de si. Só resta imaginar se o caminho que ele vai percorrer será o de um auto-aniquilamento de um Ivan Fiodórovitch ou de um renascimento como o de Raskolnikov.

Aí vem os contos da velhice. Não me identifiquei tanto, talvez só por Graça e a questão religiosa, a ambiguidade do ódio pelas velas e a fé que ainda existe, resiste, subsiste. E as pequenas hipocrisiazinhas de existências mirradas que não se vão do mundo sem deixar veneno inoculado aqui e ali, embora com certa dignidade.

Finalizando, temos ‘Os mortos’. O que me impressionou aqui foi só o final mesmo, parece apenas mais uma situação banal, cheia de ocasiões banais mas que, sem que percebamos, vai nos conduzindo a uma tragédia do orgulho, a um sentido filosófico da morte, sentido poético até, um rememorar cheio de reflexão mas nada moralista, é como a superação de todos os vícios dessa Dublin, dessa Dublin chamada Gretta, superação operada pelo amor de Gabriel. A resposta é o amor, a compaixão pela dor que abre certa esperança, como em Duffy, esperança de cura das feridas. Nada metafísico, romântico, idealista. Só cirúrgico.

Li em três dias, um livro curto mas denso, cheio de uma melancolia, uma nostalgia, nada muito claro nem muito revolucionário no estilo ou na escrita, só algo mais cru mas que vai apresentando e abrindo situações e sentimentos onde se vai desvelando não só Dublin, mas todas as Dublins do mundo, todos os particularismos pelos quais se manifesta o homem em seu destino, sua busca. Foi uma leitura pouco menos que angustiante, foi reveladora, de certa forma um aperitivo do que iria encontrar em Ulysses.

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