terça-feira, 2 de abril de 2013

Li Primeiras impressões sobre Ulysses


Impressões fugidias, incompletas, caóticas de uma primeira leitura malfeita, caótica, dispersa, indigna. Que EXIGE uma releitura.

Primeiro, a introdução. Ela é preciosa, muito aprofundada, contando detalhes das lutas de Joyce, seus sonhos e expectativas, sua ligação com Stephen, seu itinerário intelectual-artístico, o anti-militarismo quase pacificista, a androginia ideal e o arquétipo amado-desprezado do homem feminil, a negação do épico e do livresco pela sátira intertextual e desprezo e sublevação de seus cânones em uma obra repleta de vozes narrativas dissonantes, consciências flutuando conforme o faz a mesma narrativa, a autocrítica do mesmo processo de alternância de vozes e criação de um verdadeiro caos estilístico que ocorre em um todo curiosamente ordenado. Enfim, a introdução cobre a história das edições do livro, a questão linguística que permeia toda a obra, a negação do ‘cuchulainnismo’, a defesa vigorosa, audaz e no entanto livre e debochada do modernismo junto com todas as implicações filosóficas da androginia, do espelho quebrado, Odisseia como esqueleto, Hamlet como centro do drama stepheniano etc.

Enfim, a introdução é maravilhosa, impecável, não perde nada e acho que é por tê-la lido antes que não aproveitei a leitura. Ela me apontou sentidos e direções presentes no texto que me predispôs a ‘procurá-los’, antes eles se apresentassem naturalmente a mim ou mesmo de forma velada ou não se apresentassem e eu ficasse sempre com a minha apreciação mais tosca e míope que essa leitura truncada, ansiosa, febril e dispersa que acabou sendo minha primeira leitura do Ulysses.

A Telemaquia foi dura de digerir mas não porque eu desgoste de Stephen mas acho que é por não ter lido ‘Um Retrato’, o que pretendo fazer antes da releitura de Ulysses. Sei que gosto de Stephen, e até me identifico bastante com ele, a solidão do pensador que vive com a consciência dividida entre a Tradição que encerra a sua fé, sua forma de ver o mundo, o altar onde ele ajoelha e queima seu incenso como seus pais e a modernidade, a quebra de toda Tradição, o insólito no banal, a miséria e dor como fundantes da verdade do homem, enfim, com uma heresia pérfida que assola todo o seu ser porque profetiza a decadência da Tradição e aponta para o moderno como algo realmente verdadeiro sobre o homem, por ser algo despido de toda construção, de toda grandiosidade épica e mitologização, é algo humano e que fala à sua sensibilidade de homem, filósofo e poeta. Não, eu não me acho poeta ou filósofo não, mas eu me identifico com essa busca, com essa dor. Adoro o personagem e por isso preciso ler ‘O Retrato’, preciso entender o que é essa trajetória intelectual-artística dele, como ela se dá, o que ela significa, para poder entender os pontos-chave de seu pensamento, em que consiste e o que revela a sua poesia, e sua relação com a mensagem de Joyce e com o plano todo do Ulysses.

Sei que li Proteu enquanto caminhava na praia em Santos e foi maravilhoso ir tentando reconstruir em mim e ir mergulhando o espírito e o coração naquele fluxo de consciência, foi perturbador, quase narcótico e ainda assim senti que me atrapalhava, quedava, deixava muito escapar e me esforçava demasiado. Pegar água com as mãos. Mas lia em voz alta.

As coisas se tornaram mais interessantes na segunda parte. Bloom é um alívio, foi um sossego, um refrigério. A inquietude dolorosa da alma dividida cede o lugar a uma alma simples e complicada, simples na sua aceitação quase indiferente das próprias fraquezas, insucessos, chifres, decepções enquanto as vê dentro do complexo maior da miséria humana. Não faz isso como filósofo, mas como poeta. Aceita por aceitar, deixa correr no sangue e no coração de forma passiva a dor e a alegria, que vão se mesclando. É um personagem apaixonante. Foi interessante ler sobre coisas tão banais no seu dia no conjunto de uma narração totalmente pessoal, consciente, uma história de um dia comum vista pelos olhos de uma pessoa comum. Pessoa comum que sente atração por mulheres, mulheres fortes, resolutas, dominadoras. Tomei nota disso. Homem que admira a força, o vigor que lhe falta, homem submisso a uma ordem que não crê ter como escapar, homem cheio de sonhos, projetos ambiciosos, desejos cheios de pecado, homem ambicioso, pervertido, sensual, feminil.

Cíla e Caribdis. Filosofia, poesia, Stephen, Stephen, Stephen. Paternidade como algo tradicional e ultrapassado, incapaz de formar algo ou alguém. Formação da mãe, amor pela maternidade como única formação real e ontológica do ser humano. As relações múltiplas e expressas de forma poética entre a arte de Shakespeare e o drama stepheniano. Aquilo tudo que eu passo com dificuldade e queria entender melhor.

Lembro de Sereias como minha parte preferida do livro. Acho que Galindo fez uma tradução primorosa mesmo não tendo lido outras nem o original só pelo que li aqui, a musicalidade da cena e a musicalidade do texto, tudo tão bem orquestrado, a consciência flutuante se unificando em imagens tão belas, o pensamento tornado poesia, como quando ouvimos ou lemos algo que nos toca e nossa mente dispersa se une em torno de uma ideia e um sentimento belamente tecidos.

Em seguida vieram Rochedos Flutuantes que, como algo tão experimental, me pareceu meio ‘off’, lembrou sim Dublinenses mas acho que não estabeleci a ponte muito bem, acabei deixando escapar, lendo fragmentariamente. Isso seguiu até Ciclope e se abrandou em Gado ao sol, interrompido por Nausicaa onde li calma e gostosamente. E aqueles fogos… Deus do céu, o que foi aquilo? Tudo bem sexo>tantra>Deus, mas como se escreve algo assim com a masturbação? E o orgasmo? O que é aquele misto de excitação sexual e exaltação mística? A poesia do despudor, do desejo, do diálogo do relaxamento depois do ato?

Circe. Circe foi a experiência mais louca, visceral, perturbadora, excitante, febril, mística que já tive em literatura. Poderia ser a leitura infinitamente pior do que foi, o livro todo teria valido só por Circe. A androginia aparece óbvia, todos os sonhos e perversões mais absurdas, as delícias mais estranhas, o prazer das fantasias políticas e ideológicas levadas ao seu extremo, a tara sexual do verdadeiro bdsm, o verdadeiro sentido e sentimento da dominação experimentado pelo homem feminil: a mulher viril que completa sua natureza mutilada, frustrada, castrada pela cultura, pela modernidade que não lhe permite mais, ou seria algo já dado?, que não lhe torna mais possível a masculinidade. Ohh, Bloom grávido!!! E em todo esse gozo, essa liberdade exuberante e metafísica, plena enfim, a culpa, o peso do remorso e da carga emocional de uma Tradição seca, morta, que não mais vivifica, antes torna deficiente, dependente, frágil todo movimento em busca da libertação a que a mesma tradição prometia levar. Circe é demais. Bloom ali no centro, Stephen ao seu lado, começa a se desenhar uma relação entre o caminho do Artista e os desejos e frustrações do Ulisses.

A terceira parte, Nostos, foi mais tranquila. Acho que eu estava mais tranquilo por ver que nada poderia ser mais diferente que Circe e me deixei levar por Eumeu como se levado hipnoticamente mas muito consciente do processo estilístico que organizava tudo ali, como em Gado ao sol, pelo objetivo, até decepcionante, do encontro de Bloom e Stephen, suas trocas e correspondências, uma leve e constante relação de comunhão entre o feminil e o intelectual quebrado, talvez um homossexualismo intelectual mas levemente sensual em um toque e outro? No entanto, filosófico, comunhão de almas e fim da jornada. Consumação.

Ítaca foi mais difícil, mas cômico, pesado e divertido, leitura atravancada e obsoleta mas engraçada e como a concluir tudo, passando das tentativas da ordem a tentar compreender a consciência fragmentada a uma desfragmentação corrosiva da própria ordem. O catecismo é um castelo nas nuvens. E cai.
Penélope. Gozo, excitação, tesão, orgasmo, sensualização, instinto, virilidade feminina, mulher máscula, força apaixonante, vigor. Que dizer de Penélope? Você não a lê, você mergulha com a sua consciência em um mar de devassidão e perfídia naturais como o Éden, sem pudor nem frescura, mas amando, amando, amando cada vez mais cada sensação, cada impressão, cada imagem, uma mais pervertida e alucinante que a outra.

Bom, essas são minhas impressões fragmentadas, perdidas, toscas, resultado de uma leitura fragmentada, perdida e tosca. Sinto que a introdução me prejudicou, revelou demais, me deixou ansioso e estragou bastante a experiência da leitura, mas o maior culpado sou eu mesmo. Faltou experiência, faltou ‘Um Retrato’, certo desprendimento, humildade, sensibilidade. Acho que só vou poder sentir o livro mesmo nessa releitura que pretendo fazer. Uma releitura crua, focando no texto, tentando pegar as referências, mas com um sentido de unidade maior, leitura contínua e sem quebras exceto as que o livro propõe.

Mas ninguém está preparado para Ulysses na primeira leitura. Acho que tenho que reler, que confrontar os abismos do livro de forma inocente e pueril para se compreender, sentir o que nos falta, onde cambaleamos. E primeira leitura é bem o que já li sobre a obra: ‘É o livro que nos lê’. É nela que o livro mostra o que nos é mais compreendido e sentido, mais intuído, o que mais necessitamos, amamos, idolatramos.

Para mim foi Sereias, Nausicaa, Circe, Penélope.



Ahhhh, Circe.

E isso revela muita coisa.

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