terça-feira, 2 de abril de 2013

Li Primeiras impressões sobre Ulysses


Impressões fugidias, incompletas, caóticas de uma primeira leitura malfeita, caótica, dispersa, indigna. Que EXIGE uma releitura.

Primeiro, a introdução. Ela é preciosa, muito aprofundada, contando detalhes das lutas de Joyce, seus sonhos e expectativas, sua ligação com Stephen, seu itinerário intelectual-artístico, o anti-militarismo quase pacificista, a androginia ideal e o arquétipo amado-desprezado do homem feminil, a negação do épico e do livresco pela sátira intertextual e desprezo e sublevação de seus cânones em uma obra repleta de vozes narrativas dissonantes, consciências flutuando conforme o faz a mesma narrativa, a autocrítica do mesmo processo de alternância de vozes e criação de um verdadeiro caos estilístico que ocorre em um todo curiosamente ordenado. Enfim, a introdução cobre a história das edições do livro, a questão linguística que permeia toda a obra, a negação do ‘cuchulainnismo’, a defesa vigorosa, audaz e no entanto livre e debochada do modernismo junto com todas as implicações filosóficas da androginia, do espelho quebrado, Odisseia como esqueleto, Hamlet como centro do drama stepheniano etc.

Enfim, a introdução é maravilhosa, impecável, não perde nada e acho que é por tê-la lido antes que não aproveitei a leitura. Ela me apontou sentidos e direções presentes no texto que me predispôs a ‘procurá-los’, antes eles se apresentassem naturalmente a mim ou mesmo de forma velada ou não se apresentassem e eu ficasse sempre com a minha apreciação mais tosca e míope que essa leitura truncada, ansiosa, febril e dispersa que acabou sendo minha primeira leitura do Ulysses.

A Telemaquia foi dura de digerir mas não porque eu desgoste de Stephen mas acho que é por não ter lido ‘Um Retrato’, o que pretendo fazer antes da releitura de Ulysses. Sei que gosto de Stephen, e até me identifico bastante com ele, a solidão do pensador que vive com a consciência dividida entre a Tradição que encerra a sua fé, sua forma de ver o mundo, o altar onde ele ajoelha e queima seu incenso como seus pais e a modernidade, a quebra de toda Tradição, o insólito no banal, a miséria e dor como fundantes da verdade do homem, enfim, com uma heresia pérfida que assola todo o seu ser porque profetiza a decadência da Tradição e aponta para o moderno como algo realmente verdadeiro sobre o homem, por ser algo despido de toda construção, de toda grandiosidade épica e mitologização, é algo humano e que fala à sua sensibilidade de homem, filósofo e poeta. Não, eu não me acho poeta ou filósofo não, mas eu me identifico com essa busca, com essa dor. Adoro o personagem e por isso preciso ler ‘O Retrato’, preciso entender o que é essa trajetória intelectual-artística dele, como ela se dá, o que ela significa, para poder entender os pontos-chave de seu pensamento, em que consiste e o que revela a sua poesia, e sua relação com a mensagem de Joyce e com o plano todo do Ulysses.

Sei que li Proteu enquanto caminhava na praia em Santos e foi maravilhoso ir tentando reconstruir em mim e ir mergulhando o espírito e o coração naquele fluxo de consciência, foi perturbador, quase narcótico e ainda assim senti que me atrapalhava, quedava, deixava muito escapar e me esforçava demasiado. Pegar água com as mãos. Mas lia em voz alta.

As coisas se tornaram mais interessantes na segunda parte. Bloom é um alívio, foi um sossego, um refrigério. A inquietude dolorosa da alma dividida cede o lugar a uma alma simples e complicada, simples na sua aceitação quase indiferente das próprias fraquezas, insucessos, chifres, decepções enquanto as vê dentro do complexo maior da miséria humana. Não faz isso como filósofo, mas como poeta. Aceita por aceitar, deixa correr no sangue e no coração de forma passiva a dor e a alegria, que vão se mesclando. É um personagem apaixonante. Foi interessante ler sobre coisas tão banais no seu dia no conjunto de uma narração totalmente pessoal, consciente, uma história de um dia comum vista pelos olhos de uma pessoa comum. Pessoa comum que sente atração por mulheres, mulheres fortes, resolutas, dominadoras. Tomei nota disso. Homem que admira a força, o vigor que lhe falta, homem submisso a uma ordem que não crê ter como escapar, homem cheio de sonhos, projetos ambiciosos, desejos cheios de pecado, homem ambicioso, pervertido, sensual, feminil.

Cíla e Caribdis. Filosofia, poesia, Stephen, Stephen, Stephen. Paternidade como algo tradicional e ultrapassado, incapaz de formar algo ou alguém. Formação da mãe, amor pela maternidade como única formação real e ontológica do ser humano. As relações múltiplas e expressas de forma poética entre a arte de Shakespeare e o drama stepheniano. Aquilo tudo que eu passo com dificuldade e queria entender melhor.

Lembro de Sereias como minha parte preferida do livro. Acho que Galindo fez uma tradução primorosa mesmo não tendo lido outras nem o original só pelo que li aqui, a musicalidade da cena e a musicalidade do texto, tudo tão bem orquestrado, a consciência flutuante se unificando em imagens tão belas, o pensamento tornado poesia, como quando ouvimos ou lemos algo que nos toca e nossa mente dispersa se une em torno de uma ideia e um sentimento belamente tecidos.

Em seguida vieram Rochedos Flutuantes que, como algo tão experimental, me pareceu meio ‘off’, lembrou sim Dublinenses mas acho que não estabeleci a ponte muito bem, acabei deixando escapar, lendo fragmentariamente. Isso seguiu até Ciclope e se abrandou em Gado ao sol, interrompido por Nausicaa onde li calma e gostosamente. E aqueles fogos… Deus do céu, o que foi aquilo? Tudo bem sexo>tantra>Deus, mas como se escreve algo assim com a masturbação? E o orgasmo? O que é aquele misto de excitação sexual e exaltação mística? A poesia do despudor, do desejo, do diálogo do relaxamento depois do ato?

Circe. Circe foi a experiência mais louca, visceral, perturbadora, excitante, febril, mística que já tive em literatura. Poderia ser a leitura infinitamente pior do que foi, o livro todo teria valido só por Circe. A androginia aparece óbvia, todos os sonhos e perversões mais absurdas, as delícias mais estranhas, o prazer das fantasias políticas e ideológicas levadas ao seu extremo, a tara sexual do verdadeiro bdsm, o verdadeiro sentido e sentimento da dominação experimentado pelo homem feminil: a mulher viril que completa sua natureza mutilada, frustrada, castrada pela cultura, pela modernidade que não lhe permite mais, ou seria algo já dado?, que não lhe torna mais possível a masculinidade. Ohh, Bloom grávido!!! E em todo esse gozo, essa liberdade exuberante e metafísica, plena enfim, a culpa, o peso do remorso e da carga emocional de uma Tradição seca, morta, que não mais vivifica, antes torna deficiente, dependente, frágil todo movimento em busca da libertação a que a mesma tradição prometia levar. Circe é demais. Bloom ali no centro, Stephen ao seu lado, começa a se desenhar uma relação entre o caminho do Artista e os desejos e frustrações do Ulisses.

A terceira parte, Nostos, foi mais tranquila. Acho que eu estava mais tranquilo por ver que nada poderia ser mais diferente que Circe e me deixei levar por Eumeu como se levado hipnoticamente mas muito consciente do processo estilístico que organizava tudo ali, como em Gado ao sol, pelo objetivo, até decepcionante, do encontro de Bloom e Stephen, suas trocas e correspondências, uma leve e constante relação de comunhão entre o feminil e o intelectual quebrado, talvez um homossexualismo intelectual mas levemente sensual em um toque e outro? No entanto, filosófico, comunhão de almas e fim da jornada. Consumação.

Ítaca foi mais difícil, mas cômico, pesado e divertido, leitura atravancada e obsoleta mas engraçada e como a concluir tudo, passando das tentativas da ordem a tentar compreender a consciência fragmentada a uma desfragmentação corrosiva da própria ordem. O catecismo é um castelo nas nuvens. E cai.
Penélope. Gozo, excitação, tesão, orgasmo, sensualização, instinto, virilidade feminina, mulher máscula, força apaixonante, vigor. Que dizer de Penélope? Você não a lê, você mergulha com a sua consciência em um mar de devassidão e perfídia naturais como o Éden, sem pudor nem frescura, mas amando, amando, amando cada vez mais cada sensação, cada impressão, cada imagem, uma mais pervertida e alucinante que a outra.

Bom, essas são minhas impressões fragmentadas, perdidas, toscas, resultado de uma leitura fragmentada, perdida e tosca. Sinto que a introdução me prejudicou, revelou demais, me deixou ansioso e estragou bastante a experiência da leitura, mas o maior culpado sou eu mesmo. Faltou experiência, faltou ‘Um Retrato’, certo desprendimento, humildade, sensibilidade. Acho que só vou poder sentir o livro mesmo nessa releitura que pretendo fazer. Uma releitura crua, focando no texto, tentando pegar as referências, mas com um sentido de unidade maior, leitura contínua e sem quebras exceto as que o livro propõe.

Mas ninguém está preparado para Ulysses na primeira leitura. Acho que tenho que reler, que confrontar os abismos do livro de forma inocente e pueril para se compreender, sentir o que nos falta, onde cambaleamos. E primeira leitura é bem o que já li sobre a obra: ‘É o livro que nos lê’. É nela que o livro mostra o que nos é mais compreendido e sentido, mais intuído, o que mais necessitamos, amamos, idolatramos.

Para mim foi Sereias, Nausicaa, Circe, Penélope.



Ahhhh, Circe.

E isso revela muita coisa.

Dublinenses (James Joyce)


Li o livro em poucos dias. Acho que foi bom ter lido assim, de uma vez e relativamente rápido mas refletido porque pude reter certas impressões muito fortes e ainda absorver o todo da obra.

O que mais chama a atenção é a unidade em torno do homem em sua relação com o tempo, não só com o tempo nem apenas com a idade, mas com o todo que liga tempo, idade, homem, pathos ou falta de pathos. Em outras palavras, a unidade dos contos está nos efeitos do tempo universal e do tempo particular (as condições sociais, culturais, políticas e religiosas da Dublin de fins do século XIX e começos do XX) e como esses efeitos vão se orquestrando e se organizando em um quadro melancólico de pessoas que ao mesmo tempo que assumem sua identidade irlandesa (registrada em vícios e virtudes características), se identificam ao todo da humanidade. São as mesmas virtudes e vícios, principalmente vícios, de todos os homens mas encarnados em almas se deslocando pela bela e suja Dublin. Dublin é a corporeidade. Não é só um corpo, é o que dá corpo, forma, a consciências atormentadas por si mesmas, pelas próprias hipocrisias, paixões, divisões na alma. Os dublinenses são tão reais como eu e você, e nossas consciências não são menos atormentadas que as de Little Chandler ou do narrador de Arábia.

Falando dos contos, acho meio complicado falar de cada um. Basta dizer minhas impressões sobre os que mais me chamaram a atenção, exceto por um ou outro menos importante onde se podia ver esse retrato da alma mais ou menos cru, mas de forma superficial, mas é totalmente culpa minha não ter captado isso, creio eu. Outros rasgaram meu coração, me feriram mesmo, provavelmente por eu me ter identificado com algumas situações e com os sentimentos ali descritos. Um exemplo foi Arábia: o amor do narrador criança por aquela moça é descrito de forma tão cruelmente exata, um sentimento puro, doce, cândido, angelical de adoração silenciosa, de suspirar tímido e isolado, praticamente uma paixão religiosa, e toda essa volúpia que se entrega inocentemente a um simples pedido da amada, um pedido por algo banal, até inútil. E essa inutilidade não impede de o coração estabelecer uma relação de devoção, de missão que vai se afinando pelo martírio constante da ansiedade que vai corroendo a alma até a realidade do banal, do simples, que bate de frente com toda essa idealidade sonhadora, fantasista, doce… e a pobre criança chora. De ódio? De quem? Provavelmente, de si mesma…? Interessante notar que os contos envolvendo a infância não me chamaram a atenção como esse; sim, eles se ligaram a mim de uma forma melancólica e doce também, mas era mais nostalgia que outra coisa, enquanto esse me trouxe memórias antigas e, com elas, dores antigas, uma comunhão no sofrimento mesmo.

Entre os contos da adolescência, ‘Eveline’ e ‘Após a corrida’ me tocaram mais. O primeiro pela razão que todo conto romântico-realista toca: a disparidade entre o desejo do coração e a realidade, e aqui acompanhada de um senso de banalidade que chega a ser ofensivo. Ofende tanto que foi um lampejo mais forte, mais um, da genialidade do Joyce. Já o segundo me remeteu a situações reais e mais que a elas, a estados de espírito, a uma euforia muito característica da adolescência, da juventude, a fuga de responsabilidade, e em tudo uma visão jovem, viciada, perdida, desagregada que permeia todas as Dublins do mundo. Mas que aspira a algo diferente, a algo mais sublime, hermético talvez?

Entre os contos da vida adulta existe só Argila que não me chamou muito a atenção. Os outros foram angustiantes, pungentes mesmo, dolorosos. ‘Uma pequena nuvem’ é o conflito entre estilos de vida, entre estilos de viver a vida, entre almas e seus destinos, os caminhos que percorreram e mais que isso, a sua relação consigo e com os próximos e como isso afeta, aliás, até funda e forma seus destinos. Nada idealizado aqui, nada mais que enfrentamento de egos, a irritação do banal elevada a um paroxismo de dor e de ira, onde o vício (ira) é a bílis que escorre de um organismo corrompido pela rotina incessante e miserável, pela insuportabilidade do mundo, de si mesmo, da Dublin particular. Esse foi tenso demais. Aí temos ‘Contrapartida’ e seu ‘heroi’: aqui é muito claro, muito evidente, a predileção instintiva (é o instinto que impera aqui) de Farrington pelo… instinto, ou melhor, por si mesmo. Tudo à sua volta é desimportante, tudo é relativo, inútil, até odioso, tudo que exista no mundo que não seja para satisfazer seus vícios pessoais, seu apetite descontrolado pelo niilismo alcoólico, tudo, é inútil, quando não é a satisfação do vício em si ou meios de conseguir mais uma dose. Não existe aquela sanha em conseguir uma garrafa ao custo de qualquer coisa, isso seria baratear demais a Dublin de Farrington, não, ele se satisfaz sim mas em tudo a satisfação do vício aliada a outros eventos igualmente viciados, outras instâncias de vício, de satisfações egoístas, de valorações egoístas. E o final, o da surra, é pungente exatamente por isso, além da violência, é o de saber que isso só vem fechar a incessante e dolorosa busca de se satisfazer nunca ficando satisfeito não apenas no vício, mas na contemplação do vício, na transformação degradante de tudo, de toda sua Dublin, em vício. Encerrando, temos ‘Um caso doloroso’. Duffy é o típico misantropo, mas que diferente de outros seres recolhidos, isolados, niilistas, se vê às voltas com um envolvimento que ele julga ser incapaz de manter e mesmo de desejar. Isso gera um afastamento e pela própria intelectualidade desse afastamento, já sentimos algo de triste aí. E só piora: as notícias que ele recebe em seguida são ainda mais crueis porque não dá nem mesmo pra evocarmos remorsos, sofrimento que redime o homem de si mesmo e do mundo e o restitui à liberdade e comunhão com o gênero humano, não, aqui o remorso não vem, só há raiva e uma tentativa de esquecer. Isso choca, é doloroso demais. Mas… parece que Joyce não é um total descrente da metanoia: Duffy é uma pequena centelha de esperança, mesmo ele tem arrependimento, sofre ao contemplar a vida, se sente responsável por ela, lamenta não ter cuidado dessa flor. Ela morre, ele morre com ela, morre dentro de si. Só resta imaginar se o caminho que ele vai percorrer será o de um auto-aniquilamento de um Ivan Fiodórovitch ou de um renascimento como o de Raskolnikov.

Aí vem os contos da velhice. Não me identifiquei tanto, talvez só por Graça e a questão religiosa, a ambiguidade do ódio pelas velas e a fé que ainda existe, resiste, subsiste. E as pequenas hipocrisiazinhas de existências mirradas que não se vão do mundo sem deixar veneno inoculado aqui e ali, embora com certa dignidade.

Finalizando, temos ‘Os mortos’. O que me impressionou aqui foi só o final mesmo, parece apenas mais uma situação banal, cheia de ocasiões banais mas que, sem que percebamos, vai nos conduzindo a uma tragédia do orgulho, a um sentido filosófico da morte, sentido poético até, um rememorar cheio de reflexão mas nada moralista, é como a superação de todos os vícios dessa Dublin, dessa Dublin chamada Gretta, superação operada pelo amor de Gabriel. A resposta é o amor, a compaixão pela dor que abre certa esperança, como em Duffy, esperança de cura das feridas. Nada metafísico, romântico, idealista. Só cirúrgico.

Li em três dias, um livro curto mas denso, cheio de uma melancolia, uma nostalgia, nada muito claro nem muito revolucionário no estilo ou na escrita, só algo mais cru mas que vai apresentando e abrindo situações e sentimentos onde se vai desvelando não só Dublin, mas todas as Dublins do mundo, todos os particularismos pelos quais se manifesta o homem em seu destino, sua busca. Foi uma leitura pouco menos que angustiante, foi reveladora, de certa forma um aperitivo do que iria encontrar em Ulysses.

Sagarana (Guimarães Rosa)


Li Sagarana. Bom, a minha impressão no começo foi de muita estranheza, desconhecimento de termos e palavras típicas do sertão mineiro e baiano, fiquei meio perdido, incapaz de relacionar os acontecimentos com o local até por essa dificuldade. Curiosamente, isso só se deu no começo do primeiro conto. A estranheza diminuiu porque eu parei de me preocupar tanto com o sentido literal das palavras e fui tentando intuir delas o sentido em relação ao contexto, e ir ‘sentindo’ como fluía a relação dessas palavras com esse mesmo contexto, o que ele revelava, como se expressava e acho que consegui compreender melhor mesmo quando não entendia. Difícil explicar.

A impressão que fica do livro é de uma série de contos, de novelas que tratam de assuntos banais, que podem ter ou não um final imprevisto, trágico ou cômico, como se o único intuito fosse o da conclusão. Mas se percebe com a leitura que o intuito das estórias, se intuito há, é o da estória mesma. O centro, o sentido de todos os contos, não é o sertão, nem o sertanejo, nem os atos que os entrelaçam, mas algo maior, transcendente, o sentido por trás de local, personagem e evento, é o Sertão mesmo, o Sertão que resume em si todos os contrários, as andanças sofridas e os sofrimentos andados da vida sertaneja, da vida que é relação do vivente com o onde-se-vive, a vivência, essa vivência é que é o Sertão, ou melhor, o Sertão encerra toda essas vivências e seja o fim inesperado de alguém, de alguéns, seja a morte, a vida, o fim trágico ou a situação trágica, tudo é uma imagem do Sertão, um símbolo deste, que representa e reatualiza todos os sofrimentos das vivências e como esses sofrimentos todos, em seu enfrentamento, é que consiste a vida verdadeira vivida e a libertação, enfim, é atingida.

E a linguagem é a maior prova, o maior testemunho dessa realidade, dessa concretude. Difícil de engolir no começo, mas é ela que leva o leitor a se aprofundar no Sertão, a enxergar, a sentir, por essa linguagem pedregosa, o quão duro e real é a vida, em todas as suas vivências.

Conto por conto:

O Burrinho Pedrês

Estória singela, do ponto de vista de um burro, que faz a gente se perguntar: ‘Realismo mágico’, ‘Fantasia’? Nada disso. Não tem mágica nem fantasia, nem fantasismo nem fábula, muito menos mito ou qualquer explicação fantástica de antropomorfização do burro. O burro é burro mesmo, na real, burro de verdade, burro concreto, mas burro sertanejo. E aqui tudo é sertanejo, a estória, a trama que se desenvolve entre o dono da boiada, os boiadeiros empregados seus, sua condução da boiada, as dificuldades do trabalho, a trama principal, o amor plus traição plus vingança. E isso tudo arremetido na nossa frente, e bem visível, acompanhado de uma série de menores causos, subtramas, paralelas, que se vão contando e tecendo com aquela linguagem peculiar do sertão, da vida rural, vida mesmo. E enquanto vemos essas estórias se entrelaçando e se desenvolvendo, a gente pára, olha, pensa e quando vê, se abate a grande desgraça sobre os boiadeiros, a tragédia grande que tudo engole, apequena, relativiza. Como tudo na vida, o grande destino é grande mesmo, nada que o homem pense como grande lhe toca, e das pequenezas faz um diabo cavalgando a morte.

A volta do marido pródigo

Esse conto aqui é bem engraçado. Parece de menor importância: o relato de um homem sem muita responsabilidade e cheio dos dotes de esperteza do meio em que vive, dono de uma sabedoria pragmática mas com uma volubilidade e uma instabilidade infantis. Sem muita noção ou maturidade, ele não dá muito valor a nada, nem à mulher, vai pra fora de seu lar experimentar as coisas da ‘civilização’, depois retorna, cheio de saudade e a gente vê como, pela mesma esperteza que lhe degradou por sua vontade, ele agora vai se criando, se imiscuindo, se metendo e conquistando aos poucos. Jeitinho brasileiro? Eu não vi nada transcendente aqui, então creio que sim, mas talvez esteja como imagem da alma sertaneja, dos extremos em que cai um homem por conta de ser imagem das contradições do lugar e época em que vive.

Sarapalha

Sarapalha é mais diferente, único. Parece que o foco está menos nos personagens e mais no cenário, cenário devastado, fedegoso, doente. É uma estória pungente mesmo, me emocionei com aqueles dois, e como a história deles, seus amores, esperanças, tristezas e mágoas casava com aquela desgraceira toda e peste e morte e cadáveres fedidos etc. Foi duro mesmo, duro ver a dureza de coração ali, como tudo parecia mais difícil.

Duelo

Duelo foi complicado, e não gostei tanto assim. Estória de traição, vingança, perseguição. Aqui a linguagem se mostra mais sertaneja ainda, com os usos, falares, mentalidade jagunça mesmo, dureza do sertão. Mas o mais surpreendente e metafísico de tudo é o final: o vingador-traidor desiste de sua vingança, acometido pelo seu mal ele busca se redimir do mal que causou e de seus outros pecadilhos pela quietude, a convalescença que não vem mas se espera, a bondade caridosa do bom trato com os outros, com o moleque aspirante a pistoleiro, moleque que é bom, é bom e grato ao seu benfeitor e acaba fechando o conto metendo uma bala no antigo perseguido. Não sei se dá pra sentir pena do morto, pena mais se tem é de quem se odiava no começo. O sofrimento redime, transfigura, deifica.

Minha Gente

Parece romance de folhetim, até por ter como protagonista um mineiro assim tão civilizado, conhecedor dos usos e modas, até galante à sua maneira amineirada. Um gentleman. E envolvido em um caso de amor. O que se destaca aqui, além do aspecto político-regionalista, é a descrição dos amores e de sua saudade pela prima. Isso é muito doído mesmo. E o final foi um soco no estômago. O amor se desilude, outra é a noiva, outro o casamento, e tudo surpresa, e… não sei mesmo. Não houve uma grande tristeza de amor desiludido, houve uma surpresa desagradável, algo que tanto mostra como o amor engana e desengana, como a realidade é coisa falseada pelos enamorados, quanto mostra que esse amor engana o leitor também, ele é absorvido pela obra, de tão concreta, tão real. E essa decepção é duríssima, lembra bastante o conto ‘Arábia’ do Dublinenses, de James Joyce.

São Marcos

Retrato muito interessante das crendices e superstições do povo do interior, e contado por um que lá vive, e um poeta, sabedor das belas descrições da natureza e dos costumes do povo em que ele vive. E que não se furta aos ódios pequenos também, e logo se vê vítima de um feitiço que só se finda pela vingança última. O que chama bastante a atenção aqui é a incerteza inoculada no leitor sobre o que estamos lendo, se é feitiço mesmo ou balela, e, sendo balela, se a verdade não existe mesmo ou se está na fé no feitiço. Tudo complicado e difícil de compreender, de pegar nas mãos, mais ou menos como a magia aparece nos livros de Cornwell, mais loucura que magia, no entanto, mágica. E a metafísica, a superação das contradições, está no fim de quem perverte a ordem natural com suas artes, e fim trazido pelo ofendido, fim querido pela natureza, fim ôntico, filosofante.

Corpo Fechado

Ainda aqui se fala de feitiços e na complicada questão de sua veracidade, sua verdade como falácia ou como psicológico que movimenta a coragem, mesmo sendo o real do feitiço uma coisa irreal. Mas o que mais gostei foi do Manuel Fulô, malandrão, cheio dos trejeitos mais típicos do sertanejo valentão e espertalhão, síntese das condições sociais e econômicas, mas isso é também um palavrório apequenador. Manuel Fulô não é síntese de nada além de si mesmo, o que é nele característico e nostálgico talvez seja aquela sabedoria e simplicidade que quem é de família nordestina, de origem rural, sabe bem, e bem aprecia. Um conto gostoso. E transcende bem aquela morte.

Conversa de Bois

Seria um conto mais mágico que fantástico. A conversa entre bois ocorre como se estes estivessem, no seu trato com os homens, se hominizando, deixando cada vez mais a bestialidade e o mais fantástico desse processo é o processo mesmo, a transformação paulatina deles em algo como que homens. Sem liberdade e técnica nenhum, eternos escravos, mas homens na aceitação do domínio, homens na consciência de si, da alimentação, da vida que vivem e dos homens, consciência, mas ela pontuada por muito instinto ainda, bem vivo e às vezes adormecido. Nesse sentido é que eles falam com saudade contrariada do boi Rodapião, exemplo avançado de hominização. E paralelo a toda essa conversa, e no meio dela, o drama duro e dolorido de chorar do menino Tiãozinho, com o pai morto depois de prostrada doença, a mãe e seu Agenor traidores, e herdeiros do destino do menino. E esse drama vai também se desenvolvendo conforme a boiada avança, como se aprofunda a tristeza de Tiãozinho conforme avança na estrada e avança nas lembranças.
O fim? É um fim justo, recompensador, duro também e meio auto-repreensível, mas esses sentimentos que invadem não são mais fortes que a conversa dos bois.

A hora e vez de Augusto Matraga

Diz-ser o conto mais importante do livro e pude perceber o porquê. A vida de Nhô Augusto é uma vida de brutalidade, seu ser e todo o seu agir se resume na entrega aos desejos, às suas vontades próprias, e pequenas maldades de cada dia. A ponto de sua mulher que até lhe tinha amor, lhe deixa, deixa por outro. E a própria vida toma conta de Augusto, a vida mesma lhe arma, na pessoa de seus antigos jagunços, um revés que lhe teria custado a vida não fosse a gente que o acolheu. Só mesmo Deus pra lhe valer daquele jeito, lhe salvar daquela forma! E pra que o salvaria se não fosse pra lhe salvar de inteiro, todo, sua alma inclusa? Abandonada sua vida cheia de violências e desmandos, nosso heroi Augusto se vê em um processo de regeneração, de redenção, de muitas rezas e piedade, de muita paz e trabalho duro, braçal, honesto. Nós nos deslumbramos com a transformação do homem brabo em homem manso e cristão fiel e temos esperança em sua resistência às tentações.

Até a chegada de Joãozinho Bem-Bem, e aquele seu fascínio jagunceiro, a memória de outra vida, a coragem que inspira os homens mesmo na vilania, a troca da miséria piedosa e da vida mansa feminil pelo varonil e viril andar e batalhar do fora-da-lei. Tentado por essa vida, por essa coragem, nosso heroi já havia percebido que, para ele, mudado de uma coisa pra outra em instantes, pra ele não haveria redenção pela contínua santificação, mas só na desintegração total, no fim imediato para lhe pagar os erros. Encontra o amigo, cai na tentação? Não, ele encontra na hora daquele ataque, daquela jagunçagem toda, ele vê ali sua hora e sua vez, iria ele se fingir de cego ou seria ele insensível? Não!, ele iria defender, defenderia com sua vida o bem, o justo e o direito, defenderia porque foi pra ISSO que ele foi poupado, ESSA é a sua hora e a sua vez. E os moribundos trocam carícias, se despedem como mártires, como quem verteu toda a taça e agora sofre o reverso, agora se acaba, agora tudo culmina. Tudo finda. Todas as contradições são superadas e Deus sorri no fim de tudo, a libertação aqui está.

quinta-feira, 7 de março de 2013

Confissões de um coração vazio - parte 1


É sempre estranho avançar pelo mar de ideologias que formaram e formam o universo intelectual ocidental, pode-se dizer até mundial. Abstrair os princípios fundamentais de pensamentos e teorias políticas e econômicas tão díspares e aparentemente contraditórias e, enfim, fazer algum tipo de radiografia bem descompromissada dessas ideias é algo desencorajado por um sentimento de impotência, de invisibilidade, até de impalpabilidade que nos acomete.

É difícil explicar isso mas temos que os modos pelos quais se formaram e se afundaram os diversos 'projetos da modernidade' nos mais variados níveis e instâncias, das mais sutis às mais concretas aplicações desses projetos, desses niilismos e modernismos e pós-modernismos, e a impressão imediata que se tem é de esquizofrenia, de febre, excitações absurdas, nem mesmo de sonho porque o sonho é algo real, é algo que tem alguma origem, fonte de coisas reais e que se propõe a algo mesmo quando nasce e se desenvolve de forma a revolucionar certos estados e estruturas da consciência e do real. Não, a única coisa real na modernidade e principalmente na pós-modernidade são seus espasmos de dor, suas contrações de fúria, enfim, os movimentos exteriores de processos lentos e/ou mais ou menos rápidos de instintos, forças, energias que se revolvem sobre si mesmas, se excitam, evoluem e involuem em ciclos e fluxos desconexos e inconstantes. Uma ideia geral, abstrata, do que ocorre com o Ocidente desde o fim da Idade média é a de um homem tendo um ataque epiléptico, e um ataque que dura séculos! Pode-se imaginar uma coisa dessas? Talvez não, mas é essa a sensação daquele espírito que consegue abstrair, se elevar acima das paixões modernas, das tensões ideológicas e vícios intelectuais, para aqueles poucos... mas isso não é novidade para quem já leu algo de Friedrich Nietzsche e é razoavelmente familiarizado com os trabalhos de Julius Evola. Falo de outra coisa...

O que quero dizer é aquela nítida e dolorosa incapacidade de síntese, o horror que essa vastidão de conceitos e massas amorfas de teorias e histórias sangrentas produz sem resultar em nada de inteligível, é a falta de princípios mas muito mais que isso é a presença contínua de influências e energias de fontes diversas e contraditórias, é uma dança asquerosa de poderes que vem, passam e levam consigo qualquer certeza, qualquer ponto ou referência e largam em seu lugar pontos de dúvidas, é essa substituição, é a inversão diária, horária, de qualquer centro, qualquer ideia, até mesmo de qualquer relatividade, a própria realidade sendo vivida como algo de inverossímil e disperso. Não falo de ideias, conceitos, civilizações, falo de sentimento... isso que sinto, essa angústia, esse terror diante disso tudo que nos cerca e cerca sem centro, sem ideia e mesmo percepção de qualquer espécie de que monstro nos ameaça... é isso medo? Profecia? Exaltação infantil? Preconceito?

Eu tenho a sensação que esses gritos de angústia já foram proferidos antes por mim e fico estarrecido ao ver que não importa o quanto tente me elevar, conhecer, aprender, o temor não só não se vai como tende a crescer, tende a aumentar o horror de se ver cercado por esses abismos absurdos e que só se aprofundam e arrastam mais fundo a consciência. Não só nada aprendi como nada realizei em mim, parece que só tive maior certeza da incerteza de toda aproximação desses demônios. Mas talvez isso seja o melhor, talvez esse reencontro consigo mesmo em um momento posterior indique renascimento, deposição da cruz antiga, tomada de novas cruzes, novas vias?